MATINAS por Maria Eduarda Rosa
Só haverá paz para a consciência humana quando não existir distinção alguma entre o “eu” e o “outro. Agostinho da Silva
Desço as escadas Vigorosa como uma guerreira Em marcha, Pé esquerdo, mão direita, Pé direito, mão esquerda, Um, dois, um, dois. Percorro os dezasseis degraus E, mantendo o mesmo ritmo, Depressa passo o corredor E chego à cozinha.
Em frente, o olhar abarca a azinheira e o limoeiro E para além do verde portão e da rua de alcatrão, Um campo a abarrotar de chagas –capuccinas ou papagaias- Vermelhas e amarelas E ainda algumas delas Destas cores mescladas.
Em cima do portão, há alguns pássaros a espreitar E nas árvores há outros ainda a balouçar. Há uma secreta, misteriosa e indizível corrente entre nós De tal modo que eu de mim me esqueço E vou a correr dar-lhes alimento.
O pátio vai-se enchendo de melros, azorinos, Toutinegras e tentilhões - Estes em cantos agudos campeões -, Piscos e pardais, E até uma lambandeirinha Com o seu vestido tricolor.
Satisfeitos com o repasto, dão às asas E é ouvi-los nas árvores próximas Com seus melodiosos gorjeios aflautados E trinados de arrepiar os mais sensíveis corações. Tem razão o poeta Saint-John Perse: “Les oiseaux gardent parmi nous Quelque chose du chant de la création.”
Que belo concerto primaveril! Regresso à cozinha Em passos de chamarrita Sîmorgh de mim mesma.
As gatas, porém, vão chegando Enquanto os pássaros iniciam um canto de susto. A primeira gata tem pelo branco, amarelo e preto. A seguir, chega a gata ibérica de pelo acinzentado. Por fim, vem a gata branca Que me fala num miar indecifrável. As gatas comem à vez.
Regresso à cozinha. Será que agora Já posso cuidar de mim? Varadouro, Açores, 2020. 05. 03
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