quarta-feira, junho 03, 2020

Ciclos Agostinianos - Açores


  MATINAS                                                                       por  Maria Eduarda Rosa   

Só haverá paz para a consciência humana quando não existir distinção alguma entre o “eu” e o “outro. Agostinho da Silva



Desço as escadas
Vigorosa como uma guerreira
Em marcha,
Pé esquerdo, mão direita,
Pé direito, mão esquerda,
Um, dois, um, dois.
Percorro os dezasseis degraus
E, mantendo o mesmo ritmo,
Depressa passo o corredor
E chego à cozinha.

Em frente, o olhar abarca a azinheira e o limoeiro
E para além do verde portão e da rua de alcatrão,
Um campo a abarrotar de chagas –capuccinas ou papagaias-
Vermelhas e amarelas
E ainda algumas delas
Destas cores mescladas.

Em cima do portão, há alguns pássaros a espreitar
E nas árvores há outros ainda a balouçar.
Há uma secreta, misteriosa e indizível corrente entre nós
De tal modo que eu de mim me esqueço
E vou a correr dar-lhes alimento.

O pátio vai-se enchendo de melros, azorinos,
Toutinegras e tentilhões
- Estes em cantos agudos campeões -,
Piscos e pardais,
E até uma lambandeirinha
Com o seu vestido tricolor.

Satisfeitos com o repasto, dão às asas
E é ouvi-los nas árvores próximas
Com seus melodiosos gorjeios aflautados
E trinados de arrepiar os mais sensíveis corações.
Tem razão o poeta Saint-John Perse:
“Les oiseaux gardent parmi nous
Quelque chose du chant de la création.”

Que belo concerto primaveril!
Regresso à cozinha
Em passos de chamarrita
Sîmorgh de mim mesma.

As gatas, porém, vão chegando
Enquanto os pássaros iniciam um canto de susto.
A primeira gata tem pelo branco, amarelo e preto.
A seguir, chega a gata ibérica de pelo acinzentado.
Por fim, vem a gata branca
Que me fala num miar indecifrável.
As gatas comem à vez.

Regresso à cozinha.
Será que agora
Já posso cuidar de mim?                                                        
Varadouro, Açores, 2020. 05. 03

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